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quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Naufrágio

Para todo o lado que olho, vejo fetos e destroços e abortos de conversas despenteadas, vejo colmeias vazias de vôos incessantes, de tempos idos em viagens sem rumo, de semi-sonhos desfeitos em poeira do deserto em que todos caminhamos. Vejo a memória que um dia se irá merecer. Há um odor próximo à inadiável manhã, vem aí mais um irrespirável dia, mas para mim será sempre noite. Uma imensa, escura e sombria noite. Como eu gosto. Esgotei o mau senso de me recriar com o ar rarefeito pelo qual tantas vezes me deixo embriagar. Dias diferentes, algo do momento que foi preciso. Era preciso magoar? Tinha mesmo de ser? Se não fosse de chorar, daria para rir. E percebo onde caio, e onde quero cair, e onde não queria cair, e como me odeio por cair. E como nada nunca mais será o mesmo, porque se adiam os dias. Tudo o que sei é que chove em todos os recantos duma alma assim. E não há um só abrigo à vista. Naquele dia, tudo me pareceu infinito, ou finito duma forma infinita, ou pura e simplesmente nem sequer me ralava. Tudo sabia bem, tão bem, que julguei ter lábios de chocolate. Ou não eram dos meus o gosto doce que a mim fazia toda a impressão de que não havia amanhã. Que bem que podia não haver. Senti o doce enleio do vácuo a aspirar tudo que havia, e acho que sem notar, notei a diferença no fim. Senti a picada fatal, a saída de cena, o estrangulamento venal. Mas o que importa é que houve um pedaço de perfeição, e achei ter ouvido querubins e violinos. Violinos e querubins. E por um segundo que fosse, o mundo foi meu. Toquei o céu sem saber que, debaixo de meu pés, o chão desabava. Eu não sabia, mas a Primavera que se me anunciava, tinha sido Outono já dentro do ventre. É irrelevante, o final. Esse cutelo mor. Corta apenas quando deixas.
Para todo o lado que olho, vejo-me a mim.
Naufragado em riste, um abismo sem fim.

6 comentários:

IpsaEgo disse...

"Mas houve um pedaço de perfeição..."

A Mafalda Veiga, com a sua guitarra, cantou:
"Mas é preciso morrer e nascer de novo, semear no pó e voltar a colher. Há que ser trigo, depois ser restolho, há que penar para aprender a viver..."

Porque há sempre um post mortem, uma fénix que é capaz de renascer das cinzas...

um grande abraço

Marta

Vaskio disse...

A frase que citas é na realidade tua, e tu bem sabes. Sim, há sempre uma fénix, a Jean Grey... Explodiu a si mesma para salvar quem mais amava.

IpsaEgo disse...

Mas renasce sempre das cinzas...

patricia disse...

Há um leme
e um capitão
mas a nau é que naufraga
na fragância das ondas
na fraga cutânea

O leme virou
sob ordens do capitão
mas sobre ele há a nau

e essa quer a fraga
que corta, rasga
mas dá vida à vida,
a fragância do sangue
que corre nas veias.

***

* misty * disse...

apetecia-me mesmo muito comentar este texto, mas não sei escolher as palavras certas como tu...

este naufrágio arrepia-me bem naquele ponto de nós onde as palavras findam e já não saem mais... gosto das emoções que as frases recriam em mim, gosto de sentir que eu também as sei de coisas minhas, de momentos meus... talvez por isso as palavras se tenham afeiçoado tão suavemente a mim e eu a elas :)

inspiração, inspiração! é o que se bebe aqui ;P sempre...
*

Rui Cardoso disse...

Porreiro. És artista disto sim senhor.

Vejo alguns dos meus textos nestes teus ultimo (pelo menos) mas, aqui com mais uns aninhos de experiência.

Mas anda lá que eu apanho-te. xD